PAU QUE BATE EM CHICO NÃO PODE BATER NO CHIQUINHO

 

A primeira experiência que a gente vive com leis é autoritária. Os pais determinam limites e hábitos independentemente da nossa aceitação. O que se justificaria pelo fato de não haver suficiente compreensão naquela idade dos filhos. Pouco depois surge uma experiência “legislativa” mais interessante. Nas brincadeiras, precisamos seguir regras. As regras necessariamente são claras – e, nos permita o Arnaldo, também simples. Regras são a própria brincadeira, o jogo existe por causa delas. Se os participantes não respeitarem-nas o jogo perde o interesse, esvazia. Do universo das brincadeiras surgiu ainda o “café com leite”. Por assim dizer, o estagiário, aquele que vai ser o jogador do futuro. Ele começa a interagir no ambiente das regras, mesmo desconhecendo-as.

Na vida empresarial essa experiência da infância guarda lições. Uma das mais importantes é sobre a busca por estabilidade. E dá pra conferir! Se você for a algum lugar onde se brinca de bate lata, pega pega, mãe da rua, queimada, taco, bets e tantas outras, vai ver que acontecem como nos tempos dos bisavôs. Pode ter uma pequena adaptação aqui, outra acolá, mas sem perder a essência. Também entre as empresas o jogo fica mais interessante quando tem estabilidade nas regras. E isso é motivador para investimentos e para aproximar novos players. Sem esquecer que o “café com leite” pode agregar algum valor ao ambiente da brincadeira.

O Brasil tem algum apego especial à posição de café-com-leite. Ele participa do jogo e muitas vezes nem é levado em conta. Por exemplo, somos o sexto maior mercado de automóveis do mundo. E entre esses seis, somos o único que não tem uma marca própria. Se somos um mercado tão bom, por que não temos fabricantes de marcas nacionais? Somos, sim, grandes fabricantes, mas de marcas estrangeiras. Os três mercados seguintes abaixo do Brasil no ranking são Reino Unido, França e Coreia do Sul e todos têm marcas próprias, também exportadas para outros mercados. No setor de telecomunicações – que mais interessa aqui – das 3 grandes operadoras nenhuma é brasileira. Duas delas, Vivo e Tim, nasceram como estatais da Espanha e da Itália, respectivamente. O maior mercado da Vivo não é a Espanha, seu país sede. É o Brasil. O mesmo  acontece com a Tim. Quer dizer, nesse jogo, o Brasil é o maior entre os participantes, mas não decide nada, não manda nada. Um autêntico café-com-leite. Um parênteses importante de ser feito é que o Brasil já teve todo o setor de telecomunicações, mas estatizado. Depois da privatização acabou surgindo a Oi, empresa privada nacional que chegou a ser a maior operadora do país. Começou a se expandir rápido demais e hoje tem parte dos ativos em recuperação judicial e a parte principal já foi vendida entre as três grandes operadoras citadas. Fechando os parênteses, agora vamos olhar para o que o Brasil tem feito de bom em favor dos café-com-leite nesse setor. Existe uma legislação que estabelece algumas facilidades para as muito pequenas operadoras, mas as coloca de fato no jogo. Elas podem competir no mercado e conquistar parcelas maiores. Lembrando que não existem médias operadoras, por enquanto. As chamadas assimetrias são regras mais flexíveis que protegem as pequenas, para que elas possam concorrer com as grandonas. Essa lei é o PGMC – Plano Geral de Metas de Competição, e conceitualmente parece muito interessante.

O que se espera é que pequenas operadoras nacionais comecem a concorrer, se posicionem no mercado e no futuro possam, por meio de fusões ou aquisições, conquistar um poder de mercado significativo. O problema é que algumas decisões administrativas que a lei admite, por vezes acabam subvertendo toda a lógica desse sistema. O caso recente foi a decisão do conselho diretor da Anatel, na semana passada, que reclassificou a Sky como uma prestadora de pequeno porte. Uma grande empresa, com presença multinacional, cujo modelo de negócio está em queda no mundo todo – TV por assinatura via satélite. No Brasil ela recebe esse tipo de incentivo, sendo classificada no nível de uma pequena operadora que atua na floresta amazônica, por exemplo. Vai garantir empregos, coisa importante, mas que não faz parte da atuação da Anatel. Ademais, por quanto tempo? Se o negócio dela não se mantiver em outros países, todos os empregos que ela gera em qualquer país vão desaparecer.

Importante considerar que as áreas técnicas da agência e a Procuradoria Federal Especializada foram contra o pedido da Sky. Mesmo assim o conselho diretor bancou a decisão, ainda em caráter cautelar. O PGMC é um sistema que não apenas propiciou o surgimento de mais de 10 mil provedores de pequeno porte no Brasil. Mas criou as condições para que empreendedores levassem serviço de banda larga nas localidades mais distantes, que jamais seriam atendidas pelas grandes operadoras. Portanto, é uma solução a ser preservada. Sem estabilidade nas regras, a brincadeira pode ficar muito sem graça.

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