NÃO VAI FAZER FALTA PRA NINGUÉM... OU VAI??



Roubar frutas na casa da vizinha. Quer dizer, roubar algumas frutas da árvore frutífera do quintal da casa da vizinha. Uma tradição do folclore urbano do passado, quando as casas ainda tinham quintais, árvores frutíferas e a vizinha falava “bom dia”. Sim, daqueles tempos em que “os jovens ainda respeitavam os adultos”. Tempos em que, se tudo fosse tão bom como dizem, não teriam os tempos atuais como descendência.


“Molecagens” desse tipo incluíam roubar galinha para fazer galinhada. Nesse caso, a tradição mandava convidar o dono da galinha para experimentar a iguaria pronta. Reza a lenda que a galinha roubada é mais saborosa, então que se compartilhe o prazer com o dono. Até os cursos de Direito, no Brasil, comemoram a data histórica da categoria – o 11 de agosto – com a prática de um calote. No dia, basta entrar em grupo num restaurante, pedir do bom e do melhor e, ao final, anunciar o balão dizendo: “-Dia da pendura!”. Tudo muito engraçado, não é mesmo? Não??


Tecnicamente nada disso é roubo, seria apropriação indébita. E quem está preocupado com o que diz a lei? De fato, das tantas coisas divertidas do passado, boa parte não tinha maldade. Subtrair algumas mangas de uma árvore, uma vez ou outra, sem consultar antes o proprietário, não representa prejuízo para ninguém. Ou mesmo um frango mais gorducho, entre tantos que ciscam num grande terreiro. Mas pode abrir as portas para desvios mais sérios. Uma boa oportunidade para quem gosta de dizer que “só poderia ser coisa de brasileiro”. Seguramente, não.


Um relatório da Audiovisual Anti-Piracy Alliance (AAPA) revela que, no ano de 2021, nos países da União Europeia e no Reino Unido, 5,9 milhões de jovens, entre 16 e 24 anos de idade, usaram indevidamente serviços de IPTV. Isso representa cerca de 11% da população nessa faixa etária daqueles países, ou seja, mais do que 1 em cada 10 jovens. Se considerar a pirataria em todas as idades, o número de transgressores naquela região do planeta é de 17,1 milhões de pessoas, ou 3,21 bilhões de euros, para pensar no prejuízo sob outra medida. A grande maioria entre os transgressores são jovens. Não é mera molecagem. Alguma coisa acontece muito seriamente no orçamento de muitas pessoas. Dentre elas, alguns milionários, mas muitos são trabalhadores comuns que tiveram algum tipo de atuação na produção dessas milhares de horas de audiovisuais.


Deve ser a natureza virtual desses produtos que dificulta a contemplação do grande crime que se comete contra tantas pessoas. “Que diferença vai fazer para a Amazon um filme ou outro de vez em quando?”. A permeabilidade poderosa dessa indústria acaba por ofuscar quantos "filmes ou outros" são obtidos dessa forma a cada minuto. Também passa batida a participação do crime organizado, de quadrilhas violentas que se vêem atraídas pela “molecagem” tão lucrativa, que permite chegar ilicitamente a essas obras.


O relatório da AAPA também fez referência a pesquisas do Instituto da Propriedade Intelectual da União Européia (EUIPO), mais antigas, e que apontam proporções robustas de 10 anos para cá. Segundo a entidade, cerca de 10% das pessoas entrevistadas admitiram usar fontes ilegais de streaming entre 2013 e 2017. Não é muito menos do que se viu a partir da pandemia. O pior, no entanto, é que os dados mais recentes indicam que a prática está aumentando, principalmente entre os jovens. No período de 2018 a 2021 a pirataria nesse segmento teria aumentado em 25%. E, neste ano de 2022, um terço da população jovem daquela região já teria utilizado meios ilegais para obter produtos digitais.


O respeito com o alheio é algo difícil de se ensinar. Nos países desenvolvidos o que parece funcionar mesmo é a repressão. Por aqui mais parece que nenhum dos métodos é muito testado. A questão é que os meios digitais recebem investimentos de milhões e milhões de dólares, em conteúdos gravados nos mesmos zero-um de uma postagem do WhatsApp. E, quando planejam previamente esses gastos, os empreendedores fazem previsões contando com milhões de pagantes. Para que tudo isso continue funcionando, basta que os termos do acordo, do grande contrato social, também funcionem. É isso que está em jogo. Não dá mais para ter uma ideia da insignificância ou não do que vai ser subtraído, como quem vê um frango entre tantos no terreiro. As conclusões simplistas agora tendem a ser muito injustas. 

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