A CONTA DOS IMPROVISOS TECNOLÓGICOS DO PASSADO




Nos anos 70 do século passado a sigla JB teve alguns significados marcantes no Brasil. O Jornal do Brasil era um destacado veículo da imprensa carioca e nacional, João Batista era o general da vez para ocupar a Presidência da República, o whisky JB estava entre os mais vendidos nas boates de destaque ... e o “jeitinho brasileiro” rabiscava uma nova cara para o Brasil do milagre econômico.


Por conta do “jeitinho” padrões e normas foram reclassificados como meras bobagens: “- Se podemos fazer o mais fácil, por que complicar?” Favelas “facilitaram” a política habitacional, mais tarde a urbanização de favelas “viabilizou” a infraestrutura – mas não resolveu a segregação e muitas outras carências. Agora procura-se soluções para a violência, que vem de todos os bairros, para o desemprego e tantas outras deformidades. Muitos problemas nacionais de hoje descendem de ajeitadas que foram se acumulando.

Quanto mais a ciência avança, mais fica evidente que o jeitinho é antinatural. Na natureza tudo é muito cheio de regras precisas e detalhadas. O improviso às vezes funciona, mas por pouco tempo e deixa sequelas.

Na alta tecnologia, que utiliza os detalhes profundos das regras da natureza, a gambiarra fica mais crítica ainda. Um caso simbólico, neste momento, está assombrando a infraestrutura de telecomunicações no Brasil. Um improviso, que vem dos tempos JB, agora pode atrasar a implantação do 5G. “-Quem poderia imaginar uma coisa dessas?”, vão dizer. E a resposta está no fato de que normas e padrões existem justamente por ser impossível prever tudo que virá.

Nos tempos em que a Embratel era uma estatal, o satélite Brasilsat foi posicionado para atender, em banda C, todas as grandes redes de televisão. A “cabeça” de cada rede enviava o sinal para o satélite, que distribuía para as emissoras regionais das cidades mais distantes. Naquelas regiões, onde é inviável construir muitas torres retransmissoras, o Brasilsat garantia o sinal via satélite, que as emissoras repetiam para a audiência dentro do alcance.

Então fabricantes de antenas parabólicas descobriram que os sinais do Brasilsat não eram codificados, poderiam ser facilmente captados em domicílios em qualquer lugar. Foi a conta para começar o grande problema de hoje para o 5G.

ATÉ QUANDO ATUALIZAR O JEITINHO


A posição orbital do Brasilsat se tornou o principal alvo de parabólicas Brasil afora. De luxuosas casas de campo até casas de madeira, na periferia das grandes cidades, traziam de lá o sinal gratuito, de qualidade. Para as emissoras, tradicionalmente abertas, foi uma forma conveniente de ganhar uma audiência significativa, sem fazer nenhum investimento a mais.

A casa que não podia receber sinal terrestre, por falta de antena retransmissora próxima, ficou acessível pelo satélite. Aponte a parabólica na direção do Brasilsat e, uma simples caixa, sintoniza qualquer canal aberto. É o que, tecnicamente, chama-se TVRO. A programação comercial não chega, mas o merchandising das programações artística e esportiva está garantido.

O jeitinho TVRO, totalmente clandestino e totalmente legal (não há normas, ou não se aplicam no caso) era o único sinal de TV para 6 milhões de lares, dados de 2017, do IBGE. Algo em torno de 21 milhões de brasileiros estão bem ali, no incerto e não sabido, mirando a posição do Brasilsat. Após a privatização do sistema Telebrás a Claro, que arrematou a Embratel, colocou na mesma posição orbital um outro satélite, que opera na banda C, o StarOne C2, que presta os mesmos serviços até hoje.

Estamos em 2019 e, dentro de um ano, o governo vai leiloar a banda de frequência de 3,5 GHz do espectro eletromagnético, para que as operadoras possam oferecer o 5G, quinta geração da banda larga móvel. Detalhe: o sinal 5G interfere no sinal de satélites banda C!

Em geral, interferências de sinal são tratáveis. Pode ser simples como no caso da TV digital, onde um filtro comum, instalado na recepção dos aparelhos interferidos, é suficiente. Outras situações exigem estudos caso a caso, como acontece no 5G x banda C satelital. Precisa testar várias alternativas, até encontrar a solução para cada posição específica de receptor. O que funciona para um receptor no bairro da Vila Mariana, em São Paulo, não funciona necessariamente num receptor no quarteirão vizinho, nem no Tatuapé, também em São Paulo. Muito menos para um receptor no Realengo, no Rio de Janeiro, ou para um outro aparelho em Manaus. Cada caso, um estudo específico.

Na banda C do nosso espectro trafegam os sinais de 11 satélites brasileiros e de outros 26 satélites estrangeiros licenciados aqui. A imensa maioria atende clientes corporativos, que vão contratar empresas especializadas para estudos e providências contra interferências. E aquele monte de usuários clandestinos de boa fé que recebem o sinal de TV? Cada moradia, de várias comunidades carentes, vai contratar especialistas? É o que a Anatel está tentando resolver até o início do ano que vem, antes do leilão da faixa de 3,5 GHz.

ALTA TECNOLOGIA NÃO COMBINA COM IMPROVISOS


A função social da TV aberta no Brasil é indiscutível. Ela é fundamental para as campanhas de vacinação e várias outras campanhas de interesse público, oferece orientações nos períodos eleitorais, divulga alertas. Por isso mesmo, governos não poderiam ter feito vista grossa para a forma de expansão da TVRO. Deveria, no mínimo, ter começado um cadastro, um mapeamento desses domicílios.

É o que vai ser necessário fazer agora, afirma Vitor Elísio Menezes, secretário de telecomunicações do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações. Ele está aguardando os relatórios dos testes feitos pela Anatel. 

Acredita-se que a solução para a TVRO vai ser a transferência do sinal de TV para a banda ku, que não teria qualquer interferência no 5G. Os detalhes mais técnicos podem ser obtidos a partir de artigo de Samuel Possebon, publicado no site Teletime (https://teletime.com.br/24/07/2019/banda-c-o-primeiro-grande-desafio-do-5g-no-brasil/ ). O noticioso foi o primeiro a tratar da questão gerada a partir da interferência 5G x banda C satelital.

É importante muita atenção durante todo o processo de avaliação e mitigação dessas interferências. O assunto está longe do domínio popular e ninguém pode ter a certeza de que não se trata de um susto ingênuo, como foi o bug do Milênio. A situação vai alterar os preços no leilão das faixas de frequência do 5G e envolve muitos outros interesses. Já se discute, inclusive, eventuais compensações para a população que depende do satélite para ter TV em casa.

Em tempos de novas tecnologias, se superando no mercado, em ciclos cada vez mais curtos, o icônico jeitinho brasileiro vai se tornando uma ameaça grave. Soluções improvisadas dificilmente são duradouras e costumam carregar riscos preocupantes.
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