TRANQUILIDADE ATÉ QUANDO!?
Noite
escura, a chuva começou e o casarão da fazenda longe, nem dava pra ser
avistado. O jeito foi parar na casa do Donizete, na pequena vila de colonos que
ainda resistia. Já tinha eletricidade e funcionava bem, até que meia dúzia de
clarões cortassem por cima do riacho, trazendo no rastro o estrondo das
trovoadas. Naquela hora a luz era de querosene, nos pavios de dois lampiões. O
pai do Doni disse que deveríamos esperar, porque a enxurrada que cortava a
estrada, numa voçoroca, era perigosa para as crianças. E se fosse pelo lado de
baixo, perto do riacho, o risco era pisar em cobras. Acabou sendo esse o tema
da sessão lampião: as cobras! Hoje eu entendo que o sucesso que o pai do Doni
fazia com as estórias estava no fato de sempre terem um final feliz. O que mais
me marcou foi sobre uma noite que ele passou perdido numa clareira, ainda criança, e adormeceu sobre um pedaço de couro macio que estava jogado lá. Pela manhã, ele viu que se
tratava de uma enorme sucuri. O final feliz? A sucuri tinha engolido um bezerro
no dia anterior e, quando alimentadas, essas cobras gigantes e poderosas são
incapazes de fazer mal a um inseto.
É
mais ou menos assim que alguns analistas podem se sentir em relação ao leilão
de outorgas da faixa de 700MHz para o sinal de Internet 4G. As chamadas teles,
gigantes e poderosas, pareciam muito inapetentes durante o certame. Uma delas,
a Oi, nem quis participar. E, dentre as outorgas nacionais oferecidas no pregão
– quatro no total - uma delas sequer foi arrematada. É difícil, ainda, entender
por que nenhuma tele sem operações no Brasil, sequer tenha se interessado por
um mercado tão promissor, nem quiseram participar. O leilão, que teria sido
antecipado a pedido das operadoras locais, acabou tendo pouco interesse até da
parte delas. No mínimo estranho.
O
governo insiste em dizer que fez um bom negócio. De fato, os R$ 5,8 bilhões que
ele arrecadou, em princípio, devem custar apenas a tinta da caneta que assinou
as outorgas. O governo está simplesmente licenciando um serviço que a natureza
faz sozinha. Só precisa organizar e fiscalizar as faixas de uso para evitar
interferências. A questão é que a arrecadação prevista era de R$ 8 bilhões. O
ágio pago acima do preço mínimo foi de 1%, o mais alto. Teve outorga que saiu
com zero de ágio, outra com 0,02%. Sem contar que, a cada outorga arrematada,
além do valor do lance o comprador teria que pagar um valor estipulado para o
fundo de compensações. É o dinheiro que será destinado para famílias e até para
emissoras que terão de adquirir equipamentos que serão utilizados para livrar o
sinal digital de TV de interferências. Afinal, quando entrar o 4G na faixa
leiloada, só vai ter transmissão digital de televisão, a analógica vai acabar
no Brasil. Quem não tem condições de pagar os equipamentos de filtragem de
interferências, precisará do dinheiro do fundo para não ficar sem o sinal de TV
digital. Como duas outorgas não tiveram interessados, a parte que seria
depositada para o fundo de compensações vai ter que ser coberta pelo governo.
As
faixas de radiofrequência estão se transformando num negócio cada vez mais
lucrativo para o governo. Em maio deste ano foram arrecadados R$ 153 milhões
com o leilão de quatro posições orbitais, para satélites. Ainda em 2014 o
governo planeja leiloar pelo menos mais 4 posições, além das duas sobras do
leilão para 4G. Outros dois leilões de outorgas para uso de radiofrequência
devem ser realizados no ano que vem.
O
que há de concreto nisso tudo, ainda é pouco para fazer previsões. Primeiro,
sabe-se que o governo teve problemas nas contas deste
ano, justamente quando acontecem eleições. Segundo, o modelo de
telecomunicações do país está envelhecendo, ainda é fortemente caracterizado
pelos tempos em que as tecnologias a cabo e de telefonia fixa eram as mais
utilizadas. O terceiro ponto é que o poder financeiro gigantesco das operadoras
de telefonia torna aquisições ou fusões em nível planetário prováveis a
qualquer instante, podendo alterar bruscamente o quadro de concorrência. E
finalmente, o mais preocupante: o padrão de qualidade dos serviços prestados pelas
teles no Brasil é muito baixo. Está baseado em consumidores pouco exigentes e
leis pouco eficientes para defende-los. Os concorrentes, do lado de fora,
talvez não se interessem em participar de um mercado onde lucra-se muito por
vender e não entregar. E o pior é que agora, esses serviços estão meio
"juntos e misturados" com parte dos serviços de TV aberta que,
historicamente, são ótimos.
Por
enquanto, o "pai do Donizete" não sabe nem o nome da poderosa cobra
sobre a qual está dormindo. Pode ser o governo ou o grupo das teles. Seja o que
for, depois de digerir o bezerro, o comportamento da sucuri é absolutamente
imprevisível. Para chegar a um lugar seguro precisa, logo que despertar,
definir um bom caminho e começar a correr o quanto antes.
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