ALGUM DIA TEREMOS DE PENSAR NISSO



Pode ser um alerta mais grave do que a variante ômicron. Algo como o fim do mundo, quer dizer, desse jeito que conhecemos hoje. A comparação entre a covid e o objeto do alerta da última terça-feira na Europa é didática. As semelhanças são substantivas, embora aparentemente sutis. O vírus da covid começou a se espalhar sob a incredulidade de boa parte da comunidade científica internacional: “Tudo bem, o alerta tem que ser contundente. Mas o risco é mais teórico, não deve ser tão grave.”

Durante décadas a neurose coletiva tinha foco numa terceira grande guerra, num ataque nuclear qualquer. Algo imediato e aterrorizante. A “gripezinha” não explodiu prédios nem destruiu monumentos icônicos. Mas já acumula números que poucas guerras registraram na história da humanidade. Um risco que pesa sobre cada quilômetro quadrado habitado. O grande risco agora, sobre o qual 114 entidades civis da Europa se levantaram, também perpassa o cotidiano sem barulhos nem demolições. Ele está na inteligência artificial.

Vamos ver se é exagero, se é mais uma daquelas típicas cornetadas de ONGs... Do jeito que está no marco regulatório europeu – o mais rígido na defesa da privacidade – um programa de inteligência artificial pode reconhecer remotamente as pessoas em espaços públicos. Outros sistemas podem reconhecer emoções, outros identificar alguma mania ou compulsão. Nada disso é exato, são “conclusões” desses sistemas com base nos detalhes do comportamento público das pessoas. “Essa tem alguma compulsão. Aquela outra tem uma mania e aquele lá, medo do trânsito. Tudo isso pode parar num banco de dados com um sistema de pontuação, categorizando cada um de acordo com os interesses do mercado. Isso pode incluir categorizações discriminatórias, tem sistema focado em prever “atividades criminosas futuras”, segundo informações do site Convergência Digital e da Computer Weekly.

Como não há regulação que proíba, nada impede que RHs de muitas empresas paguem para ter informações sobre alguns perfis que estão avaliando. Nessa hipótese, é difícil acreditar que alguém vá confirmar, com o candidato à vaga, as suposições da inteligência artificial sobre ele.

E então, é só histeria de ativista? Para as 114 organizações signatárias há aplicações de IA que devem ser banidas por absoluta incompatibilidade com os direitos fundamentais. Sistemas que procuram identificar origem racial ou étnica, orientação sexual, estado de saúde, deficiência e outros detalhes que fazem parte da privacidade de cada pessoa. É uma “nudez” a que todos estarão expostos, pelo simples fato de frequentar locais públicos. Traços que estarão sujeitos ao escrutínio de pessoas que você não conhece, que podem carregar muitos lapsos desses sistemas. Ou, no mínimo, características que cada um tem todo direito de resguardar, mas estarão em exibição nos big datas desse admirável mundo novo.

Já existem leis que garantem o direito de cada pessoa saber os dados que guardam a seu próprio respeito. Só não disseram quem e como vai procurar nos infindáveis labirintos digitais. O texto aprovado na União Europeia no último mês de abril estabelece que essa regulação deve ser “liderada pelo mercado” a partir de uma “abordagem baseada no risco” (ABR). Essa metodologia é comumente usada na prevenção da lavagem de dinheiro e do financiamento do terrorismo internacional. Agora, sob a liderança do mercado, não dá para prever onde isso vai parar.

No Brasil a Constituição de 88 previu o habeas data para garantir que todos soubessem os dados que outros guardem sobre si próprio. Na prática, a regulamentação só aconteceu em 1997. Ninguém podia imaginar que hoje viveríamos esse tipo de risco de invasão. Mas mesmo naqueles tempos teria sido mantida uma suposta lista secreta de litigantes trabalhistas contra bancos. Dizia-se que um funcionário que levasse qualquer banco à Justiça do Trabalho, jamais seria contratado por outro banco qualquer. Será que pelo menos isso já mudou? Hoje, no bolso um pen drive pode conter a lista dos moradores de uma megalópole. Como garantir controle sobre seus próprios dados?

Na real, o mundo “desse jeito que conhecemos hoje” é algo que vai esvanecendo em períodos de tempo cada vez menores. O temido “novo normal” é inexorável. A questão é, que mundo terá surgido daqui a dez anos. E, no que diz respeito à sociedade, que mundo teremos admitido então? Será que precisamos estar expostos a tantos tipos de ameaças? Qual a contribuição que cada cidadão, que cada nação pode apresentar para que não existam tantos assaltantes? Os latrocidas são mesmo inevitáveis? E os homens bomba? Até onde somos responsáveis por comportamentos alheios contra os quais tanto precisamos nos prevenir?

Soam românticos esses questionamentos. Talvez ingênuos, ou até engraçados, diante da realidade. Trechos de uma comédia? Tomara. Por enquanto, é a tragédia que está anunciada.

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