Ano novo, número novo. E muitas vidas renovadas


Culpar o relógio pelo passar das horas é um clássico entre os exemplos de incoerência extrema. Mesmo assim, em outras versões, o tempo acaba levando a culpa pelos fatos que se desenrolam, e muita gente aceita: “Tomara que acabe logo o ano de 2020 para que venham tempos melhores.” Ora, o que é que o ano de 2020 tem a ver com a pandemia?

Por enquanto, o que a ciência sustenta é que a pandemia é uma consequência da interação exagerada entre o homem e alguns espaços da natureza, que deveriam permanecer sob o domínio de outras espécies. Mais objetivamente, tem a ver com a derrubada de matas, com o avanço da ocupação de muitas regiões pelo homem. A gente acaba tendo contato com esses vírus que viviam quietinhos naquele canto do mundo e, de repente, descobrem que têm um hospedeiro 5 estrelas para leva-los pra lá e pra cá. O novo coronavírus, em particular, teria a ver com a rápida concentração urbana chinesa. Hábitos antigos, como o consumo de animais silvestres na alimentação, provocaram uma mistura dessas espécies vivas, presas, em entrepostos das cidades, sem cuidados sanitários.

Essas condições não aconteceram todas em 2020. Vinham ao longo de décadas e continuam se repetindo, no mundo todo, de várias formas, com potencial para gerarem problemas semelhantes à atual pandemia. Nesse mesmo tempo, independentemente do número que escolhermos para identifica-lo, o “vírus” da incredulidade na ciência se alastra de maneira mais rápida ainda. Começou com a “gripezinha”, depois foram os remédios baratos e milagrosos, a “inutilidade” das máscaras, acusações de fake news e, agora, as suspeitas contra várias vacinas. Nessa toada muitos planejam comemorações festivas da passagem de 2020, com aglomerações e muito contato pessoal, sem levar em conta as advertências da ciência. Eles podem levar para 2021 o que de pior vivemos em 2020.

O importante é lembrar de 2020 como um ano cheio de lições e de duras advertências da natureza sobre os caminhos que estamos escolhendo. Um ano de muitas descobertas científicas, não apenas imunológicas. Também de descobertas sobre o ser humano, sobre o outro, sobre a força da solidariedade. Muitas demonstrações de extrema resistência, resiliência e de compromisso profissional e humanitário de tantos trabalhadores da saúde. Foram essas variáveis que fizeram o número de vítimas da covid-19 ser, numa das maiores favelas de São Paulo, cerca de um terço do registrado na média para toda a cidade.

Foi o ano em que ficamos sabendo que milhares e milhares de famílias de baixa renda não têm dinheiro suficiente para contar com sabonete durante todo o mês. Despertamos para a necessidade de prover todas as classes sociais de absorventes femininos, de planejar bairros ao invés de “naturalizar” amontoados de puxadinhos nas favelas. É o Brasil descobrindo o Brasil. Constatando a impossibilidade de se manter os mesmos padrões de transporte público, de planejamento urbano, de saneamento e atendimento em saúde. O SUS, alvo tradicional de piadas e impropérios, ganhou finalmente o reconhecimento da sua importância. E da necessidade de mais atenção, para que possa solucionar muitos outros problemas da saúde pública. Ficam ainda demonstrações explícitas do poder do abraço, do aperto de mão, do sorriso.

Há uma ironia num ano que começa com máscaras, mas sem carnaval. Num ano que termina com a nossa vida afugentada numa dimensão virtual, digitalizada. Vivemos tempos em que maravilhosas atitudes de solidariedade, se chocam as chances reais de sustentação da sociedade. Muitos colocam publicamente a vida alheia abaixo da importância da “saúde” econômica. E o fazem sem qualquer rigor científico na avaliação das reais necessidades e possibilidades. Defendem a adoção de regras cruéis, de olho apenas nas próprias contas pessoais.

A pandemia parece mais um “contraste” aplicado na sociedade, para que se possa avistar todas as “patologias” que a acometem. Por um lado, se revelam silenciosos antígenos benfazejos, enquanto em outros pontos, doloridos espasmos denunciam intolerâncias resistentes. Quem puder avaliar os fatos, sob a ótica da ciência ou da filosofia, sem paixões e partidarismos, certamente há de encontrar os caminhos para uma renovação. Mas precisa ter a consciência de que os erros costumam começar em todas as peças imperfeitas.

Isso inclui você?

Que este novo tempo de 2021 seja repleto de felicidades, de muita saúde para todos! E que as atenções se voltem também para as causas sociais da pandemia. Tolerância é a solução para toda intolerância alheia. Humildade é a resposta certa para se opor à arrogância de quem quer que seja. E paciência é a forma de contornar as indelicadezas. Assim como é do vírus que se obtém a defesa contra o próprio vírus. Remédios e lições de uma pandemia severa.

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