ELES QUEREM CHORAR
A cada ciber ataque ressurge a ficção do domínio da máquina sobre o
homem. Mas a questão crucial é quando o homem vai dominar a máquina.
Desde os teares do Século XIX a máquina transforma a sociedade de forma
completamente alheia ao controle de seus construtores/operadores.
A
culpa dessas geringonças, ao contrário do que reza a lenda, está em
atender de forma tão fiel e eficiente aos desejos humanos. Guardamos em
algum lugar profundamente oculto do nosso “sistema operacional” um malware
avassalador que é acionado à menor aproximação de arquivos da pasta
“poder”. Máquinas em geral, quando caem em mãos hábeis, são capazes de
encher a tal da pasta. Depois da catástrofe inventamos ficções para
dividir a culpa entre o mordomo e a máquina.
Com os computadores,
verdadeiras multimáquinas, a ironia é mais engraçada ainda. O ciber
ataque da semana passada, mais do que o bilhão de dólares estimado em
resgates via bitcoins, serviu para rastrear meandros da
irresponsabilidade humana. Gente poderosa, com muitas atribuições
sérias, brincando de roleta russa com a cabeça alheia. E desta vez foi
russa mesmo.
A cena que mais inspiraria Kafka foi o protesto da
Microsoft contra as vulnerabilidades do sistema que ela criou e que a
enriquece mais e mais a cada dia. Fosse nos tempos dos teares o
fabricante abaixaria a cabeça, ficaria envergonhado e pediria desculpas
pelos transtornos. Nem precisa ir tão longe. A indústria automotiva está
cansada de publicar chamadas de recalls por falhas em seus modelos. A anatomia dos fatos mostra o quanto estamos vulneráveis aos nossos próprios desejos.
É POR ISSO QUE AS COISAS ACONTECEM
À
primeira vista parece que o início de tudo está numa das falhas de
segurança do sistema Windows. No entanto, há quem considere mais sensato
culpar a tolerância, por parte de governos e do mercado, de um
monopólio tão amplo sobre algo tão sério. O Windows tornou-se o fígado
do planeta. Todas as atividades humanas, da guerra à agricultura, passam
pelo algoritmo para serem elaboradas.
Aprofundando mais ainda,
esse domínio reflete a hegemonia econômica que permite desenvolver
pesquisas, rastrear as maiores competências, organizar projetos que
integrem todos esses recursos e inspirar uma obstinada busca pela
inovação. Palmas pra eles, com certeza! O mundo avançou muito por conta
disso. A falha é das outras nações que acharam mais cômodo utilizar o
que é tão bem produzido pelos americanos. Poderiam desenvolver outros
sistemas, compatíveis com os que já existem, a exemplo do Linux. Não por
acaso, também americano.
É neste cenário de dependência
tecnológica que tudo começa. Uma falha de segurança do Windows foi
descoberta pela NSA, que batizou o bug de “EternalBlue”. A NSA é a
agência do Governo Americano encarregada de apoiar exatamente os
trabalhos de segurança. Porém, ao invés de informar a Microsoft para que
o problema fosse resolvido, a agência decidiu guardar para si a
informação. Ela seria útil para que a agência desenvolvesse vírus para
eventuais ataques cibernéticos, uma vez que, em tempos de guerra, tudo
pode virar arma.
O “EternalBlue” era um segredo da NSA até que um
grupo de hackers denominado Shadow Brokers conseguiu invadir os arquivos
da agência. Eles encontraram a descrição da falha e divulgaram mundo
afora. Foi por aí que criminosos tomaram conhecimento de mais essa
vulnerabilidade do Windows e desenvolveram o vírus que assustou o mundo
inteiro.
Eles criaram um ransomware do tipo wannacry,
que significa “eu quero chorar”, em tradução livre. Ao ser aberto o
vírus criptografa todos os arquivos do computador e entra na rede do
usuário para se espalhar. Depois envia uma mensagem avisando que os
arquivos só poderão ser abertos depois de descriptografados. E, para
isso, cobram um resgate em bitcoins num valor aproximado de R$ 1 mil. Só
pra lembrar, a técnica de criptografia entrou na informática justamente
para dar mais segurança aos arquivos.
Nas primeiras horas o
ataque atingiu 16 hospitais na Inglaterra, uma empresa de telefonia
móvel da Espanha, a FedEx nos Estados Unidos, uma montadora de veículos
na França e, principalmente, muitos alvos na Rússia. Ao todo, pelo menos
99 países foram atingidos, inclusive o Brasil. O problema poderia ter
sido muito maior se um jovem inglês, de 22 anos, não tivesse conseguido
parar o vírus de forma quase acidental. A Microsoft se defende dizendo
que já tinha divulgado uma atualização do Windows em março, corrigindo a
falha. Mas poucos clientes tinham baixado a nova versão.
SACO CHEIO DE BACKUPs
O episódio traz à tona, mais uma vez, a importância daquela primeira lição da aula de informática: “-Faça sempre um backup.”. Quem não aprendeu por bem agora vai ter que fazer um monte de backups
para se proteger. Vai dar pra encher um saco. Especialistas acreditam
que, a partir de agora, os HDs externos vão se multiplicar. A nuvem de
dados também seria uma alternativa para proteção de arquivos.
Mesmo
com tanto alvoroço fica a forte sensação de que nada vai mudar tão
cedo. A maior parte das pessoas tende a falar do problema sem nem saber o
que está dizendo. As medidas de segurança vão continuar dependendo de
normas e ações corporativas. E uma grande corrida deve ganhar novas
proporções em busca de mais conhecimento e autonomia na Tecnologia da
Informação. As máquinas, vão continuar sem culpa de nada.
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