QUE PAÍS É ESSE?



Nesse caso não é nenhum brado de indignação. Apenas um clamor estatístico. Há muito tempo se diz que o Brasil não tem dados. Se procurar bem até encontra mas, no geral, são pouco confiáveis. Chega eleição é aquela guerra de números, não se sabe de onde foram tirados. A criatividade e a permissividade das redes sociais produzem mais números, com uma pitada de fatos reais – para dar alguma veracidade – e pronto, aí está o nosso Brasil.

O novo coronavírus não se engana. Para aparecer na estatística ele nem se preocupa com nome, endereço, classe social ou tipo de trabalho de seus “números”. Isso é problema de quem não quer que o intruso microscópico continue por aqui. Não é exatamente uma crise de identidade mas agora, mais do que nunca, precisamos saber quem somos e como somos.

Quem sustenta um esforço histórico nesse sentido é o IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Um órgão técnico, de muita competência porém, minado politicamente, principalmente a partir do início deste século. Justo quando os dados passaram a ser mais importantes e decisivos, se tornaram também inconvenientes diante de determinados interesses. Ainda assim lá está o IBGE, levantando dados importantíssimos Brasil afora.

Uma dessas atividades é o PNADC – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, que reúne dados a cada trimestre sobre desocupação da mão de obra, qualificação de trabalhadores, características das famílias, padrão de vida, dentre outros registros relevantes. Embora todo mundo diga que nunca respondeu a nenhuma pesquisa, a verdade é que os técnicos do IBGE saem a campo para levantar todos esses dados. Mas, em tempos do novo coronavírus, como realizar a pesquisa?

A saída é fazer de conta que estamos no século XXI e realizar a pesquisa por telefone. Até porque precisa ser feita a PNAD-Covid, apurar a realidade brasileira na pandemia, indispensável para programar ações no curto e no médio prazos. Numa canetada muito bem desferida o governo editou a Medida Provisória 954, determinando que as teles, as grandes operadoras de telefonia, enviem ao IBGE seus cadastros de assinantes com nome, endereço e número de telefone. Faz uma semana que a MP foi assinada e já aconteceu de tudo.

Entidades e partidos políticos foram ao STF reclamar da MP. Alegam que a determinação viola a Constituição e a LGPD – Lei Geral de Proteção de Dados, dentre outros diplomas legais. Que representa um risco para a privacidade dos cidadãos e uma série de outras coisas que, de fato, fazem sentido. Porém, em tempo de pandemia, até um orçamento a parte foi inventado. O direito de ir e vir está sendo condicionado nas democracias mais tradicionais do mundo e máscaras são mais importantes do que documentos de identidade. Vários especialistas consideram que, de fato, a redação da MP poderia ser mais objetiva. Mas quase uma dezena de ex-diretores do IBGE assinaram um manifesto conjunto dizendo que a o uso desses cadastros nesse momento é muito importante. O risco é de um “apagão estatístico”, capaz de paralisar providências fundamentais para essa situação da saúde pública. O desfecho na Justiça vai acontecer na próxima semana.

O que o IBGE quer é mais ou menos uma lista telefônica, como as que existiam há 40 anos e eram públicas. A grande diferença é que agora, nessa lista, teriam os números dos celulares, que são aparelhos individuais. Essas dados têm um grande valor comercial, eleitoral e podem, sim, facilitar uma invasão sem precedentes na privacidade das pessoas. Por outro lado, são muito importantes para combater a pandemia. Há um certo excesso de zelo quando se fala em dados relacionados a celulares. No estado de São Paulo a Justiça se manifestou favorável ao uso dos chamados “mapas de calor”, que exibem a posição geográfica de celulares ligados. Uma maneira de identificar locais onde há aglomerações de pessoas. Não há nenhuma referência sobre o número do aparelho que corresponde a cada ponto brilhante da tela, mesmo assim muita gente questionou.

Independente de todos os detalhes desses debates, um fato chama atenção para o gigantismo das teles. O celular é o “acessório” mais íntimo de praticamente toda a população adulta do país. Cada aparelho, principalmente em se tratando de smartphones, reúne o maior acervo pessoal da imensa maioria dos respectivos proprietários. Com quem fala, a frequência dos contatos, imagens, mensagens, preferências, compras, onde está, onde foi. Tudo isso é acessível a quatro grandes empresas: Tim, Claro, Oi e Vivo. É como se fossem um governo, que recebe todo mês seus “propostos” – não impostos, porque só paga quem quiser – de quase todos os cidadãos brasileiros. São potências corporativas comparáveis a pequenas nações.

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