A OUTRA TV E O OUTRO BRASIL
A TV Digital, oficialmente,
tomou o lugar da TV Analógica no Brasil. O processo de transição, oficialmente,
já pode ser considerado concluído. Desde que se tome por “oficial” algo como
uma verdade relativa, uma concessão da realidade dentro de limites que a lei
autoriza.
Era o primeiro domingo de
dezembro de 2007 quando, em cadeia nacional (de televisão!), o então presidente
Lula anunciava a estreia da TV Digital no Brasil. Visivelmente abatido – nada
sério, problemas com um time de futebol – o presidente resumiu o que seria um
cronograma para a total substituição do sinal analógico. A forte referência
temporal era a Copa do Mundo de 2014.
Nada daquilo aconteceu de fato.
Houve sucessivas alterações no calendário até que, em 2016, uma outra mudança
tecnológica – a expansão do 4G – levou a um calendário mais realista que se
tornou, oficialmente, a implantação da TV Digital no Brasil. Sem querer,
oficialmente, também riscaram a fronteira de um outro Brasil.
De acordo com o calendário de
2016, o realista, a transição do analógico para o digital seria concluída em 31
de dezembro de 2018. Está tudo pronto para que os trabalhos sejam encerrados em
9 de janeiro de 2019. Um sucesso em termos de planejamento que, no entanto, foi
elaborado para contemplar apenas 1.379 cidades. O Brasil que restou analógico
tem os outros 4.191 municípios, menores e muito mais pobres.
No “Brasil digitalizado” as
1.379 “cidades HD” concentram 64% dos domicílios nacionais e 62% da população
brasileira, algo em torno de 128 milhões de pessoas. Para o “outro Brasil”,
aquele dos 4.191 municípios, não há política pública viável para implantar o
sinal digital amplamente. A previsão é de que isso aconteça até 2023, mas não é
prudente apostar na data. Fica para quando Deus quiser, data em que vai
acontecer tudo que precisa para nos tornarmos um país sério.
Ao longo da história a
tecnologia vem traçando as mais fiéis fronteiras, tanto do tempo como também do
espaço. Cada vez ficam mais nítidas. O primeiro mundo está em muitos bairros
das maiores cidades brasileiras, às vezes, vizinhos de bairros lamentavelmente
africanizados. Quem revela essas diferenças, essa segregação, o quase apartheid, é o contraste das tecnologias
disponíveis às diferentes populações.
O MACRO E O MICRO NO MESMO PANORAMA
Hoje, os detalhes são sutis
para os olhos porém, expressivos na vida prática. Um tênis que absorve impacto,
o smartphone, forno de micro ondas, a
conexão com a Internet. No início do século passado o contraste tecnológico
impactava a paisagem. A chegada dos carros mudou as cidades, os caminhos. No
Brasil como um todo, nem tanto.
O que popularizou um pouco
essa realidade foi a greve dos caminhoneiros. Falou-se das estradas
brasileiras, se expôs a realidade muito diferente do que imagina o Brasil recém
digitalizado. Até tem números bonitos, somos a quarta maior malha rodoviária do
mundo, com mais de um milhão e setecentos mil quilômetros de extensão. Mas nem
7% desses caminhos são pavimentados. Isso mesmo, mais de 93% das estradas
brasileiras são de “chão batido”. É assim que queremos chegar lá...
Falta muito! Precisa, por
exemplo, entender que as coisas não são eternas, tem que cuidar. O trânsito na
cidade de São Paulo, que nunca foi bom, está caótico há algumas semanas porque
1(um!) viaduto sofreu uma avaria. Falta de manutenção. Pois bem, daqueles
míseros 7% de estradas pavimentadas – somam 105 mil quilômetros – algo em torno
de 34% alcançam a classificação regular. Outros 16% são avaliadas como ruins ou
péssimas. Novamente, não têm manutenção.
Daí vem o PLC-79 para
transferir às concessionárias de telefonia mais de R$ 100 bilhões em imóveis,
exigindo como contrapartida investimentos em localidades onde nem sempre entra
caminhão e nem trator. Ora, e a manutenção dessa infraestrutura? E as
atualizações, os upgrades? Quem não
cuida, não tem. Mais do que ter alguma coisa, é preciso saber ter.
Um atalho nessa viagem pela
maionese para retornar agora ao arroz com feijão de cada dia. A transição do sinal
analógico de TV para o digital traz lições importantes e um alerta. O alerta
fica por conta do presumível caos que seria essa transição, se não fosse o
interesse das operadoras de telefonia na expansão da Internet 4G. A sorte foi o
interesses dessas operadoras, as chamadas teles, em usar a faixa de frequência
da TV analógica para expandir o sinal 4G.
Elas pediram ao governo, que
condicionou a antecipação dessas mudanças a um aporte de capital para garantir
a digitalização do sinal nessas 1.379 cidades, agora digitalizadas. São as cidades
que mais utilizam faixas de frequência para comunicação. Isso inclui emissoras
de rádio, torres de TV, bombeiros, delegacias de polícia, antenas de celular
etc. Nos outros 4.191 municípios têm faixas de frequência sobrando, pode deixar
o sinal analógico de TV no ar que ainda sobra espaço.
ACONTECEU, MAS NÃO FOI À TOA
As teles toparam as condições
e a TV Digital está aí.
Porém, não foi mero esquema
pagou, levou. Houve um desenho competente de toda a gestão dessa transição,
garantindo fundos, transparência nos negócios e plena autonomia dos agentes
interessados, sem interferências políticas. Mais do que isso, houve pulso firme
e liderança por parte do então Ministro Ricardo Berzoini, que soube negociar em
alto nível.
A execução da transição ficou
assim: as faixas de frequência que as teles queriam, foram oferecidas pelo
Governo em um leilão. No edital constou que cada operadora que arrematasse uma
faixa de frequência, deveria fazer também o aporte de um valor para bancar os
custos da transição para o digital. O controle e gestão desses valores ficaram
por conta da EAD – Entidade Administradora da Digitalização, hoje conhecida por
“Seja Digital”. E os ajustes técnicos, sob responsabilidade de um Grupo de
Redistribuição de Sinais, o Gired. Essas duas organizações foram constituídas
com finalidade específica e geridas por representantes das emissoras de TV,
centros de pesquisas, entidades representativas do setor e as teles, além do
Governo.
As emissoras comerciais
tiveram que custear as trocas dos seus transmissores e sistemas. Mas o
fundamental era garantir que, na outra ponta, o telespectador tivesse condições
técnicas para receber o sinal. Foi aí que entrou o dinheiro das teles. Cerca de
14 milhões de conversores foram distribuídos gratuitamente entre os
participantes do chamado Cadastro Único, que reúne os nomes de atendidos pelos
programas sociais. A próxima fase é mapear e mitigar eventuais áreas de
interferência de sinal.
Nesse processo criativo e
exitoso, a única “falha” está aparecendo agora: estão sobrando cerca de R$ 700
milhões! Não deixa de ser uma falha, mas a culpa não pode ser lançada contra o
Ministro Berzoini. Durante toda a negociação ele teve que suportar o chororô
das teles. Elas já tinham depositado os valores, mas queriam precarizar a
qualidade dos conversores, dizendo que não haveria dinheiro suficiente.
As razões dessa estratégia se
revelam agora. As teles começam a fazer gestões junto ao Governo para estorno
desse valor. No planejamento inicial ficou claro que eventuais sobras ficariam
para a digitalização em áreas remotas. Mas, num país onde regras são feitas
para serem quebradas, vale arriscar no Brasil convenientemente generoso.
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